segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Salvo pelo Flamengo - Paulo Mendes Campos

 Desde garotinho que não sou Flamengo, mas tenho pelo clube da Gávea uma dívida séria, que torno pública nesse escrito. Em 1956, passei uma semana em Estocolmo, hospedado em um hotel chamado Aston. Era primavera, pelo menos teoricamente, havia um congresso internacional na cidade, os hotéis estavam lotados, criando contratempo para turistas do interior ou estrangeiros. A recepção do Aston, por exemplo, vivia sempre cheia de gente implorando por um quarto ou discutindo a respeito de uma reserva feita por telegrama ou telefone.

Estava há dois ou três dias na cidade, quando me pediram para receber um brasileiro e encaminhá-lo ao hotel, onde lhe fora reservado de fato um apartamento. Era uma hora da madrugada quando entramos no hotel e me encaminhei até o empregado do balcão, dando-lhe o nome do meu amigo e lembrando-lhe a reserva. O funcionário, homem, de uns sessenta anos e de uma honesta cara escandinava, tomou uma atitude estranha e difusa, que a princípio me surpreendeu e ia acabando por me indagar: ele não confirmava a existência da reserva, nem deixava de confirmar. Como começasse a protestar, vi que seu rosto tomava uma expressão aflita; eu entendendo cada vez menos. Quando passei a exigir o apartamento com alguma energia, o homem, trêmulo, nervoso, pediu-me desculpa e trouxe afinal a ficha de identificação. Foi aí que vi levantar-se da penumbra de uma saleta contígua e gigante.

Se o leitor conhece um homem forte, muito forte mesmo, imagine uma pessoa duas vezes mais forte, e terá uma ideia desse gigante que veio andando até nós, botando ódio pelos olhos e espetacularmente bêbedo. O monstro passou por cima com desprezo e, agarrando o empregado pela gola do uniforme, entrou a sacudi-lo e insultá-lo em sueco. Às vezes, éramos arrolados nessa invectiva, pois o gigante nos apontava enquanto dizia coisas. O empregado,
demonstrando possuir um bom instinto de conservação, deixava-se sacolejar à vontade. Rosnando, o ciclope foi sentar-se de novo na saleta, onde só então dei pela presença de outro sujeito, também bêbado, mas sinistramente silencioso.

É hoje, pensei. Saí do meu Brasilzinho tão bom, fazer uma viagem imensa, para ser trucidado sem explicação por um bêbado. O fato de ser na Suécia, onde arbitrários atos de violência não são comuns, ainda tornava mais absurdo, um absurdo existencialista, o meu triste fim.

Indaguei ao empregado o que se passava. Ficou mudo. Insistia na pergunta, e ele, sussurrando desamparadamente, explicou-me que o gigante estava a pensar: primeiro, que não conseguira vaga no hotel por ser sueco e estar embriagado; segundo, que nós conseguiríamos por ser americanos, e norte-americanos. Ora, se meu amigo de fato era meio ruivo, seu jeitão era mineiro; quanto a mim, se fosse americano só poderia ser filho de portugueses. Por outro lado, o meu inglês amarrado não deixava a menor dúvida sobre a questão de ser ou não ser americano. Só mesmo um sueco bêbado em uma madrugada de neve e vento iria supor que fôssemos americanos. Mas agora era o próprio gigante que bradava para nós com sarcasmo e ira:

─ American! American!

Fiquei um pouco mais esperançoso, acreditando que ele falasse inglês, e disse-lhe, exagerando minha alegria e o meu orgulho por isso, que não éramos americanos coisa nenhuma, éramos brasileiros.
Não entendeu ou talvez pensou que estivéssemos covardemente a renegar a nossa pátria, voltando vociferar, em um esforço linguístico que contraia todos os músculos do seu rosto:

─ American! Dólar! No like!

Essa versátil discussão ia levar-me ao abismo, quando de súbito me apareceu que a palavra “Brasilian” havia penetrado enfim em sua testa granítica. Descontraindo os músculos, o gigante me perguntou:

─ Brazil?! No american? Brazil?

Não tinha certeza se ele estava me gozando, mas sua expressão era tão estranhamente deslumbrada e infantil que afirmei cheio de entusiasmo:

─ Yes, Brazil.

Ele se levantou, cambaleou, aproximou-se, apontou meu amigo:

─ Brazil, Brazil.

Veio chegando, sorrindo, em pleno estado de graça e grito com alma, como se saltasse o nascimento de um mundo novo.

─ Flamengo!! Flamengo!!

Imediatamente o gigante entrou em transe e começou a fazer problemáticas firulas com uma bola imaginária, mas dando a entender cabalmente o quanto ele admirava (admirava é pouco: o quanto ele amava) o malabarismo dos nossos jogadores. O gigante se desencantara, virando menino. A certa altura, depois de fazer um passe de letra, parou e confessou-me com um orgulho caloroso:

─ I Flamengo! I Rubens!

Ele não era sueco, não era gigante, não era bêbado, não era um ex-campeão de hóquei (conforme soube depois), era Flamengo, era Rubens.

─ You! Flamengo?

Que o Botafogo me perdoe, mas era um caso de vida ou morte, e também gritei descaradamente:

─ Flamengo! Yes! Flamengo! The greatest one!

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